Proposta
de captar água do São Francisco para irrigar o Nordeste é inviável e
antiecológica.
Há mais de meio século, a cada seca que assola o nordeste
brasileiro, um velho e polêmico projeto vem à tona: transpor as águas da bacia
de São Francisco para irrigar os
solos do sertão nordestino.
Com alguns retoques de atualidade, essa proposta retornou recentemente
ao do discurso político, dessa vez através da promessa de usar as águas
captadas da bacia, que ocupa 2.780 km de extensão e uma área de drenagem de 634
mil km², para o abastecimento humano.
Teoricamente, parece absurdo opor-se à idéia de transpor parte
desse enorme volume de águas lançadas no oceano Atlântico – cerca de 100
bilhões de m³ anuais – para atender uma população tão castigada pela seca. Os
ambientais lembram, entretanto, que as águas do São Francisco já estão
comprometidas com a produção energética e a irrigação da própria bacia.
O volume d água disponível hoje é suficiente para irrigar no
máximo 600 mil hectares, enquanto o estoque de terras situadas às margens do
rio ocupa de três milhões de hectares.
Para o engenheiro Flávio Mayrink, vice-presidente do Comitê
Executivo de Estudos Integrados da bacia do São Francisco, o problema do
Nordeste não é falta de água para o abastecimento humano e animal. Ele afirma
que existem 20 bilhões de m³ de água acumulados nos açudes do Ceará, Paraíba e
Rio Grande do Norte, o correspondente à capacidade do reservatório de Três
Marias (MG). “Não faz sentido ignorar
essas reservas em favor de um projeto que sequer dispõe de estudos técnicos
globais da bacia”, argumenta.
O engenheiro avalia que, do ponto de vista técnico e
econômico, o projeto é inviável, pois demanda que a água seja elevada, através
de bombas, a mais de 160m de altitude, para promover uma captação de 280m³/s,
ao longo de dois mil quilômetros. Isso significaria um gasto energético de
1.300MW/ ano, mais que toda a energia consumida no estado da Bahia. Ele estima
que só o custo dessa transposição ficaria em torno de dois bilhões de dólares.
Como se isso não bastasse, uma obra desse porte causaria sério
impacto ambiental na região, sobretudo no que diz respeito à fauna ictiológica.
Segundo o biólogo e conservação Fábio Marton, do Instituto de Geociências da
UFMG, a migração de espécies de peixes de uma bacia para outra provocaria
sérios desastres ecológicos na região. Ele cita o exemplo do tucunaré,
introduzido na lagoa Dom Helvécio, no Parque Estadual do Rio Doce (MG), onde as
outras espécies de peixes foram praticamente dizimadas por esse predador.
O São Francisco nasce na Serra da canastra, em Minas Gerais, e
percorre os estados da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, atravessando
região com diferenças fisiográficas e climáticas marcante. O trecho mineiro da
bacia, que ocupa 36% da área total, contribui com 70% do caudal do rio, que vem
sendo reduzido sobre tudo pela expansão do desmatamento promovido pela
indústria guseira. Na maior parte da bacia, a contribuição das chuvas é quase
nula, e o rio chega a perder mais água do que ganha, absorvendo na estiagem a
água das veredas.
Entre as várias alternativas apontadas para combater a seca
nordestina, já se aventou a hipótese de captar água do rio Tocantins, na
Amazônia, promovendo sua interligação às bacias do Nordeste. Embora essa seja
uma tendência geomorfológica que naturalmente ocorrerá no futuro, os
ambientalistas avaliam que a antecipação do processo não descartaria um
desequilíbrio no ecossistema aquático da região. A solução seria o
aproveitamento do potencial das águas subterrâneas do próprio Nordeste.
Marise Muniz. Ciência Hoje. São
Paulo, SBPC, junho de 1995.
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